Por que tem mais BL do que Yuri?

Alice Coelho
6 min readNov 21, 2021

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Já pararam para se perguntar por que o número de obras BL que vemos por aí é muito maior do que o de obras Yuri?

Há até quem diga que BL faz muito mais sucesso, mas acho que “sucesso” é algo difícil de se quantificar com exatidão. Porém, basta olhar para a quantidade de animes e até doramas/live action de ambas categorias para ver que há muito mais BL do que Yuri.

Esse artigo aqui não tem o propósito de argumentar qual é o melhor nem qual merece mais atenção. Como fã e consumidora de ambos, só queria apontar as semelhanças e explicar as diferenças entre os dois, partindo das características de publicação dos mangás no Japão. Sei que essas obras já se espalharam por diversos tipos de mídia produzidos por todo o mundo, mas com as informações que tenho, só consigo falar com propriedade a respeito da história desses gêneros nos mangás.

Esse artigo foi inspirado pelo vídeo da Erica Friedman, e muitas das informações que coloquei aqui foram retiradas de lá. As outras referências que utilizarei estarão, como sempre, listadas no final do texto.

Um pouco de história

Maya no Souretsu (1972) — Ichijou Yukari

O BL e o Yuri começaram ao mesmo tempo, nos anos 70. As obras pioneiras do BL Juuichigatsu no Gymnasium (1971) e Sunroom ni te (1970) eram histórias curtas de um único capítulo, retratando trágicos romances entre garotos europeus. Shiroi Heya no Futari (1971) e Maya no Souretsu (1972) foram os primeiros Yuri, e também eram histórias trágicas.

Apesar do surgimento praticamente simultâneo, a partir daí o BL e o Yuri seguiram caminhos completamente diferentes. A primeira revista dedicada exclusivamente ao então chamado “Shounen-ai” (termo utilizado para se referir a BL na época) surgiu na mesma década, em 1978: a June, que publicava artigos e mangás, muitos deles feitos por artistas amadores. E a partir daí, o BL explodiu e lá pelos anos 90, no primeiro boom dos BL, mais de 10 revistas dedicadas exclusivamente a esse tipo de obra já haviam sido publicadas.

Capas da June (1978) e Yuri Shimai (2004)

E o Yuri, enquanto isso, só foi ganhar sua primeira revista exclusiva em 2003: a Yuri Shimai. Percebam que entre a June e a Yuri Shimai, houve um período de 25 anos em que o BL saiu das revistas shoujo e se espalhou em revistas exclusivas, enquanto o Yuri continuou “infiltrado”, sendo publicado junto com mangás de todo tipo. É assim que o gênero continua até hoje, “misturado”, saindo em revistas shounen/shoujo/seinen/josei e não só em revistas exclusivas para Yuri. Até porque, a quantidade de revistas Yuri em publicação atualmente é minúscula, consistindo somente nas revistas Comic Yuri Hime e Galette, e antologias como a Comic Yuri Hime Wildrose.

A realidade do público

Já entendemos que, enquanto o BL teve o seu boom nos anos 90, o Yuri só foi começar a engrenar na década seguinte, mas por que isso aconteceu?

A resposta é um pouco complicada e tem a ver com o público alvo de ambos: as mulheres.

Muita gente ainda tem aquela noção de que Yuri é majoritariamente consumido por um público masculino, o que está errado. Segundo a Comic Yuri Hime, mais de 70% de seus leitores são do sexo feminino, e mais da metade tem mais de 25 anos de idade.

Para entender por que obras protagonizadas por personagens masculinos fizeram (e ainda fazem) tanto sucesso entre as mulheres, é preciso lembrar o contexto de repressão sexual que as mulheres vivem até hoje, e que era ainda mais forte nos anos 70 e 80, quando o Yuri estava começando a dar seus primeiros passos dentro dos mangás shoujo.

É como a acadêmica Yukari Fujimoto afirma em seu artigo Where Is My Place in the World?: Early Shōjo Manga Portrayals of Lesbianism (“Onde é meu lugar no mundo? Retratações iniciais de lesbianidade em Shoujo Mangá”): “Lesbianidade acrescenta realidade à obra”. Uma obra protagonizada por personagens femininas inevitavelmente lembrará as leitoras de sua realidade como mulheres, uma realidade tolhida, cheia de normas sociais que não podem ser quebradas, principalmente no aspecto sexual.

Ao contrário dos “shounen-ai”, os primeiros Yuri tinham uma carga de realidade ainda maior, e as histórias praticamente nunca terminavam com as duas protagonistas juntas. Geralmente, uma das meninas morria enquanto a outra acabava se casando com um homem, isso quando as duas não descobriam que eram irmãs ao final da história. Isso só demonstra a realidade da época: como mulher, você nunca poderia viver o resto da vida com outra mulher.

1999 nen no Natsuyasumi — Summer Vacation 1999 (1988). Filme baseado no mangá Thomas no Shinzou teve atrizes adolescentes interpretando personagens masculinos.

Não é à toa que Hagio Moto, autora de Juuichigatsu no Gymnasium, que serviu de rascunho para sua grande obra Thomas no Shinzou (1974), afirmou que inicialmente pensou em escrever sua história com personagens femininas, mas logo desistiu porque a ideia não a agradou.

Os mangás shounen-ai, por outro lado, representavam uma realidade alternativa sem a figura feminina para lembrar as leitoras da repressão que sofria. Tanto é que, como observado por James Welker no seu livro Boys Love Manga and Beyond (“Mangás Boys Love e Além”), a maioria das primeiras obras shounen-ai se passava em um cenário europeu romantizado, quase um mundo de fantasia que não condizia com a realidade japonesa. E mesmo obras que se passavam no Japão, como Mari to Shingo (1977) e Hi Izuru Tokoro no Tenshi (1980), se passavam na era pré-moderna.

E foi através dessas obras que muitas garotas japonesas exploraram a própria sexualidade nos anos 70 e 80, projetando-se nesses personagens masculinos. Isso fica evidente nas mensagens publicadas na sessão Yuri Tsuushin da revista Allan. (Leia mais sobre isso em : Correspondência dos Lírios)

Conclusão

Kakeochi Girl (2018) — Battan

Eu diria que o Yuri está tendo seu boom desde a década de 2010, umas duas décadas depois que o BL teve seu primeiro momento. Não podemos esperar que o Yuri se comporte igual ao BL por se tratarem de gêneros diferentes, com históricos diferentes e que se comportam de maneiras diferentes.

Acho que isso se deve por todas as mudanças que tivemos no século XXI acerca das mulheres e da população LGBT+. Estamos pouco a pouco perdendo aquele desconforto em abordar sexualidade feminina, e agora esse não é um tema tão polêmico de ser trazido nos mangás.

Referências

Wellington, Sarah Thea Arruda. Finding the power of the erotic in Japanese yuri manga. Diss. University of British Columbia, 2015. https://open.library.ubc.ca/soa/cIRcle/collections/ubctheses/24/items/1.0166618

Where Is My Place in the World?: Early Shōjo Manga Portrayals of Lesbianism. Fujimoto Yukari, Lucy Fraser Mechademia, Volume 9, 2014, pp. 25–42 (Article) Published by University of Minnesota Press https://doi.org/10.1353/mec.2014.0007.

The sexual and textual politics of Japanese lesbian comics: Reading romantic and erotic yuri narratives. Kazumi Nagaike. electronic journal of contemporary japanese studies Article 4 in 2010 First published in ejcjs on 30 September 2010. https://japanesestudies.org.uk/articles/2010/Nagaike.html

Boys Love Manga and Beyond: History, Culture, and Community in Japan. McLelland, Mark & Nagaike, Kazumi & Suganuma, Katsuhiko & Welker, James. Jackson: University Press of Mississippi, 2015.https://muse.jhu.edu/book/39003

Chapter Title: LILIES OF THE MARGIN: Beautiful Boys and Queer Female Identities in Japan Chapter Author(s): James Welker Martin, Fran, et al., editors. AsiaPacifiQueer: Rethinking Genders and Sexualities. University of Illinois Press, 2008. JSTOR, www.jstor.org/stable/10.5406/j.ctt1xch37.

Welker, James. “Flower Tribes and Female Desire: Complicating Early Female Consumption of Male Homosexuality in Shōjo Manga.” Mechademia, vol. 6, 2011, p. 211–228. Project MUSE, doi:10.1353/mec.2011.0007.

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Alice Coelho

Tradutora, otaca, formada em administração, apreciadora de bishounens e sorvete de chocomenta.