Gunjou, Maniqueísmo e Violência
Sei que já deve ser um assunto passado, de certa forma, mas queria escrever esse texto falando um pouco mais das minhas reflexões sobre violência em obras de ficção.
Gunjou.
Gunjou é um mangá yuri escrito e ilustrado por Nakamura Ching, publicado de 2007 a 2012. O mangá foi publicado em duas revistas da demografia seinen, ou seja, são voltadas para rapazes mais velhos.
Nakamura Ching, a autora, disse em entrevistas que usou muito das próprias experiências como mulher lésbica para escrever essa história.
Escrevi Gunjou porque queria desenhar a pura solidão de uma pessoa solitária. Queria transforma nossa gentileza e crueldade (as emoções que não conseguimos controlar) em um mangá.
E também, porque sou gay.
Viver escondendo que eu era gay era desagradável, então queria me dar a chance de admitir que eu sou gay.Nakamura Ching em entrevista para Okazu
O mangá, que tem 34 capítulos, ganhou uma adaptação live action chamada Ride or Die (“Kanojo” ou “Tudo por Ela”) que estreou mundialmente na Netflix em 2021. Foi essa adaptação que trouxe o mangá, antes praticamente só conhecido entre os fãs de yuri, para os olhos do público maior.
Queria deixar claro que eu ainda não assisti a esse filme, mas não acho que isso me impeça de comentar sobre pontos da história e a reação do público que só teve contato com essa obra através dele. Pelo que vi no artigo da JBox (que recomendo muito a leitura, aliás), o filme traz basicamente a mesma história, porém de maneira mais suavizada e palatável, o que mesmo assim não impediu algumas pessoas de se chocarem com o conteúdo da história.
As protagonistas da história são duas mulheres adultas que estudaram juntas quando estavam no ensino médio. (Apesar de saber que elas ganharam um nome no live action, vou me referir a elas como “lésbica” e “de óculos”, porque no mangá o nome delas raramente é mencionado. ) A protagonista de óculos pede para lésbica para matar seu marido abusivo, e a lésbica atende ao pedido dela sem hesitar. Após o assassinato, as duas fogem juntas e vários detalhes sobre a vida de ambas e de várias pessoas ao redor delas são revelados.
Eu considero Gunjou como um dos meus mangás preferidos, apesar da minha relação confusa de amor e ódio que tenho com ele. A história é crua e intensa desde o primeiro instante, e eu nunca vi uma obra que demonstrasse tanta emoção como essa, mas o ritmo é arrastado e o mangá parece se estender muito mais do que deveria.
A violência é muito presente ao longo da história inteira, e foi significantemente reduzida no filme live action. Começando com o assassinato do marido, quando a lésbica o seduz e o esfaqueia durante o sexo, passando pela relação conturbada que as duas mulheres vivem durante a fuga, até o passado da mulher de óculos, que foi agredida tanto pelo pai quanto pelo marido. Gunjou é um mangá pesado, cru e cheio de raiva comprimida em suas páginas.
Não é a toa que me surpreendi quando vi o trailer oficial do filme. Sabia que muita gente acabaria achando que era um romance fofo em que uma mulher salva sua amada de um relacionamento abusivo e da violência doméstica, já que essa era a imagem que o trailer pintava, de certa forma. Mas foi aí que também parei para me perguntar: por que as pessoas olharam pra uma história que começou com assassinato e pensaram que seria um romance fofo e alegre? Vocês acharam que alguém que foi capaz de matar outro ser humano a facadas é alguém mentalmente equilibrado e saudável?
Maniqueísmo e a violência como forma de redenção
A maioria dos filmes nos apresenta uma visão maniqueísta do mundo, onde existe um bem, que é sempre puro e correto, contra um mal, que é sempre errado e mau. Essa visão também está presente na religião, principalmente no cristianismo e, portanto, está infiltrada na nossa cultura mesmo que não percebamos.
Crescemos vendo filmes como Rei Leão, A Pequena Sereia e O Corcunda de Notredame, nos quais há uma clara distinção entre os personagens “do bem” e os personagens “do mal”. Por isso estamos acostumados a procurar esses dois lados em outros filmes. A morte dos vilões nunca é retratada com a mesma tristeza que a morte de um personagem “do bem”, na verdade, a morte do vilão é sempre satisfatória, é uma punição pelos seus atos errados. É isso que estamos acostumados a procurar no que consumimos. Quando o mocinho de uma história assassina o vilão, temos a noção de que aquilo era o certo a se fazer, afinal, o bem precisa sempre vencer o mal. Essa é a visão maniqueísta, a de que toda ação, por mais cruel que seja, é justificada desde que seja para combater o “mal”.
Ultimamente, vejo muito a tendência de chamar a atenção para relacionamentos abusivos, e toda a violência decorrente deles, na ficção, o que não é algo ruim. Mas sempre me incomodou um pouco como outras formas de violência que não ocorrem nesse contexto (ou melhor dizendo, que não são cometidas contra personagens “do bem”) simplesmente passam batido. É como falei, se for para combater o mal, até a tortura mais cruel ou um assassinato são justificados. Me assusta um pouco ver como algumas pessoas simplesmente não se importam com a violência quando ela ocorre nesse contexto, especialmente quando vejo comentários desse tipo sendo feitos sobre casos reais. (A frase “bandido bom é bandido morto” soa familiar?)
Imagino que foi com essas ideias em mente que muitos começaram a assistir Ride or Die. O marido abusivo era claramente o vilão, o homem malvado que agredia a esposa e, portanto, merecia morrer. Por isso a violência que a lésbica comete contra ele é perfeitamente aceitável. Só que quando a violência dela, a personagem “do bem”, se voltou contra a de óculos, outra personagem “do bem”, as pessoas ficaram confusas e/ou acharam um absurdo. (E olha que boa parte das brigas entre elas foi cortada no filme, pelo que vi falarem.)
A visão maniqueísta de bem contra mal não se aplica a Gunjou de jeito nenhum. As duas personagens são cheias de falhas e também têm seus lados podres e errados, nenhuma das duas é puramente “do bem”, e também não são exatamente “do mal”. (E, sinceramente, é assim que todos somos na vida real, não é?) Apesar de ser vítima de violência doméstica, a de óculos também era, de certa forma, uma pessoa manipuladora, que se aproveitou dos sentimentos que a lésbica tinha por ela para forçá-la a cometer um crime. (Isso mesmo! Um crime! Mesmo que o marido fosse “do mal”, o assassinato não deixa de ser um crime.) Enquanto isso, a lésbica também é uma manipuladora, de certa forma, e que afeta a vida de muita gente ao seu redor (principalmente da ex-namorada) na decisão extremamente egoísta de arruinar a própria vida por outra pessoa.
Não vejo problemas em ver essa visão sendo usada em filmes e outras mídias do tipo, mas acho que ela não deve ser aplicada a tudo. Tem obras que são muito mais complexas do que isso, e que simplesmente não vão seguir a fórmula do bem vencendo o mal, justamente por não haver um “bem” nem um “mal”.
O que me atraiu em Gunjou foi justamente o fato de as duas protagonistas serem pessoas amarguradas e frustradas, cheias de raiva e mágoa internalizada. Pessoas que crescem em circunstâncias ruins (abuso, negligência, homofobia internalizada) dificilmente se tornarão pessoas “boas” sem fazer um esforço enorme para se resolver e superar certos traumas. É por isso que as protagonistas têm uma relação tão conturbada e acabam estourando pra cima uma da outra. Mostrar isso com tanto detalhe e de forma tão real e escancarada é o que torna Gunjou tão interessante. Admiro demais a Nakamura Ching por ter sido capaz de escrever uma obra desse jeito.
Artigo que consultei para escrever:
Dalton, Russell. (2015). (Un)Making Violence Through Media Literacy and Theological Reflection: Manichaeism, Redemptive Violence, and Hollywood Films. Religious Education. 110. 10.1080/00344087.2015.1063963.