Escritos por Héteros e para Héteros

Alice Coelho
10 min readJun 29, 2021

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Yaoi e Yuri são escritos por héteros e para héteros?

Sei que muita gente não vai ler esse texto todo, então vou deixar a resposta curta para esse questionamento logo no início. A resposta curta para essa pergunta é: Não. Não podemos nem afirmar com certeza que, nos primórdios de sua história, os mangás BL (o tal do “yaoi”) nem os Yuri eram escritos por autores heterossexuais, com a intenção de serem lidos por leitores também heterossexuais.

Isso se deve, em primeiro lugar, a um motivo muito simples: não conseguimos saber detalhes pessoais de boa parte dos autores de mangá. Autores de mangá geralmente criam um pseudônimo para assinar seus trabalhos, para não utilizar seus nomes reais, e alguns prezam tanto pela privacidade que sequer revelam o próprio gênero ao público.

Por exemplo, Haruichi Furudate, que escreveu Haikyuu!! um mangá que fez um sucesso enorme, nunca fez aparições públicas. Até hoje, quase 10 anos depois da estreia da obra, não se sabe se Haruichi é homem ou mulher. Na verdade, há até quem diga que Haruichi é uma dupla, e não uma única pessoa, mas até o momento atual (Junho de 2021), qualquer afirmação sobre a identidade de Haruichi Furudate são apenas hipóteses sem confirmação.

Eu também poderia citar aqui o exemplo de Hiromu Arakawa, autora de Full Metal Alchemist, que não é a mulher que aparece nas fotos quando você pesquisa o nome dela no google, mas acho que já deu para entender o que quero dizer, não é mesmo? Às vezes não sabemos essas informações sobre gênero e sexualidade sobre autores de obras que são famosíssimas no mundo inteiro, quem dirá de autores de mangás BL e Yuri, que são um nicho muito específico.

Sobre BL

Essa ladainha do “escrito por héteros e para héteros” aparece com frequência quando se fala de “Yaoi”, que supostamente é escrito somente por mulheres heterossexuais, e lido somente por mulheres heterossexuais, o que nunca foi verdade, nem nos primórdios da história desse tipo de mangá.

O BL nasceu nos mangás Shounen-ai, como explico no meu texto “Desde quando existem personagens LGBT nos mangás e animes?”. Vale lembrar que o termo Shounen-ai é usado apenas para se referir a esses mangás pioneiros, publicados antes do termo Boys Love começar ser utilizado no final dos anos 80.
Nos anos 70, um grupo de autoras mulheres revolucionou os mangás Shoujo (voltado para o público feminino), trazendo temáticas novas e mudanças na quadrinização dos mangás, entre outros elementos. Entre essas autoras estavam Hagio Moto e Takemiya Keiko, responsáveis por escrever os primeiros mangás “Shounen-ai” que existem, inclusive Thomaz no Shinzou (1974) e Kaze to Ki no Uta (1976), mangás que fizeram muito sucesso na época do lançamento, e que influenciaram e seguem influenciando diversos outros autores de mangás.

Um desses autores é Mineo Maya, que começou a escrever mangás para revistas shoujo nos anos 70. Sua obra mais famosa é, de longe, Patalliro!, título conhecido por ser o mangá shoujo mais longo que existe (está em publicação desde 1978) e por ter se tornado o primeiro anime a mostrar explicitamente um relacionamento homossexual na televisão, em 1982. Outras obras que ele escreveu são Rashaanu! (1978) e Tonde Saitama! (1982).

Mineo Maya e sua esposa (direita), e seus filhos (esquerda) posando ao redor de uma estátua em tamanho real de Patalliro!

Não cabe a mim (nem a ninguém) julgar a orientação sexual de autores de mangás, só quero ressaltar que Mineo Maya é casado com uma mulher, com quem tem dois filhos. A família toda frequentemente tem alguma participação nas adaptações em live-action que as obras de Maya ganharam, seja assistindo aos ensaios das peças de teatro, ou atuando como figurante nos filmes.

Enquanto isso, no lado dos leitores, o Shounen-ai foi uma espécie de “porta de entrada” para um mundo novo para muita gente. O consenso geral entre acadêmicos que estudam essa parte em específico é que os mangás sobre o relacionamento entre dois homens representavam um meio pelo qual uma garota adolescente poderia viver livre de normas sociais quanto a gênero e sexo. Isso também se vê pelo fato de a maior parte das obras shounen-ai terem uma ambientação europeia, e as poucas que se passavam no Japão eram em um período passado da história japonesa, nunca contemporâneas. Esse fator acrescentava um quê de fantasia, de poder viver em um lugar diferente do Japão atual, entrando no papel de um garoto.

Capa de uma edição da June de 1982

Em meio a esse contexto, surgiram revistas voltadas para o público feminino fortemente inspiradas pelo apelo dos mangás Shounen-ai, como a June e a Allan. A June, que mais tarde ficou conhecida como a primeira revista de mangás Boys Love, era mais gráfica, tendo foco em fotos e desenhos, enquanto a Allan era mais textual. Ambas serviam como veículo para fãs de mangás Shounen-ai de todo o Japão trocarem informações e experiências, auxiliando inclusive na formação de grupos de publicações independentes (doujinshi). Além de falarem sobre os mangás, as revistas também publicavam diversas matérias sobre a cultura LGBT da vida real, servindo como uma espécie de “ponte” entre os fãs de mangá e esse mundo. Vemos isso, por exemplo, com o surgimento de uma sessão inteira na revista Allan dedicada para anúncios de meninas que queriam ter relações com outras meninas, fossem relações sexuais, românticas ou puramente platônicas. (Falo sobre isso com mais detalhes no meu texto Correspondência dos Lírios). Em um tempo em que ainda não existia internet, essas revistas eram muito importantes para quem queria se conhecer melhor e se comunicar com pessoas que viviam em situações parecidas. E atualmente, ainda vemos isso acontecendo. Ainda vemos pessoas que descobriram muito sobre si mesmas através dos mangás BL (sugiro dar uma olhada no BL fan project se quiser saber mais sobre isso).

Bara vs. BL

Gengoroh Tagame autografando exemplares de O Marido do Meu Irmão.

O que vejo com frequência nessas discussões são pessoas falando que o certo é ler “Bara” (termo ultrapassado utilizado para se referir a GeiComi ou Gay Comics) em vez de BL, porque o “bara” é escrito por homens gays, enquanto o BL é escrito por mulheres hétero. Como o próprio Gengoroh Tagame, o autor de GeiComi mais conhecido atualmente, diz em uma entrevista, muitos autores de BL não são heterossexuais, muito menos cisgênero, sem falar nas mulheres que escrevem para revistas de GeiComi usando pseudônimos masculinos. Nessa entrevista, Tagame também fala sobre como a categorização pode ser confusa.

Quando olho a arte gay nos quadrinhos como crítico, fico um tanto aflito com essa divisão exatamente porque a maneira simplista de dividi-la é que BL representa mais romance, narrativas elaboradas, tipos de corpos mais magros, personagens mais efeminados. E então o chamado “mangá gay” seria apenas mais bombado, com caras grandes e mais sexo hardcore, etc.
Mas o que acontece quando o criador é uma mulher fazendo um trabalho mais hardcore? Aí é considerado gay? É BL só porque ela é mulher? É sobre o público ou sobre os criadores? Essas são coisas nas quais eu definitivamente penso muito como crítico.
Entrevista completa aqui.

Sobre Yuri

Yoshiya Nobuko e Monma Chiyo

Yoshiya Nobuko escreveu diversos livros e contos que foram publicados em revistas shoujo nas décadas de 20 e 30. Muitas de suas histórias eram ambientadas em colégios femininos, e eram baseadas nas próprias experiências que a autora teve quando era estudante. Essas obras foram muito importantes para a formação das obras de ficção shoujo, servindo como inspiração para diversos autores, tanto de livros como de mangás, que vieram depois. Os mangás yuri também foram fortemente influenciados pelas obras dela.
Yoshiya Nobuko era lésbica, e viveu os últimos 50 anos de sua vida morando com sua esposa, Monma Chiyo, uma professora.

O yuri surgiu nos mangás na mesma época que Shounen-ai, com primeiro mangá yuri, Shiroi Heya no Futari, escrito por Yamagishi Ryouko em 1971. Entretanto, o yuri não decolou tão rápido como o shounen-ai, que passou a ter revistas dedicadas exclusivamente à publicação desse tipo de mangá logo no final dos anos 80. A quantidade de mangás yuri publicados era muito menor do que a de shounen-ai, e o tipo de história era muito diferente. A grande maioria dos mangás yuri publicados ao longo dos anos 70 e 80 apresentavam finais trágicos onde uma das garotas morria e a outra se casava com um homem, ou terminavam com a descoberta de que ambas eram irmãs. A pesquisadora Fujimoto Yukari argumenta que essas histórias refletem a realidade das mulheres da época. No Japão (e na maior parte do mundo), durante boa parte do século XX, uma mulher viver abertamente como lésbica, mantendo uma relação com outra mulher, era impensável. É claro que havia exceções (como a própria Yoshiya Nobuko que mencionei), mas o único futuro que uma garota adolescente poderia ter era se casar com um homem e ter filhos. É por isso que nos mangás yuri antigos, o destino das personagens era casar com um homem, morrer, ou simplesmente ficar sozinha para sempre. No yuri, não há o escapismo de se imaginar como um garoto que o shounen-ai proporcionava, só há a realidade de ser mulher, que nem sempre era uma realidade tão feliz assim.

(É claro que há mangás yuri antigos que têm finais felizes. Recomendo muito que leiam Paros no Ken (1986) e Moonlight Flowers — Gekka Bijin (1989), são mangás incríveis).

Capa da Yurihime de Setembro de 2009 — Renai Idenshi XX.

A popularidade de yuri aumentou durante os anos 90, e no início dos anos 2000, apareceram as revistas dedicadas exclusivamente à publicação de mangás yuri. Assim, os mangás yuri deixaram de se resumir só a histórias de amor trágicas de alunas de colégios femininos. Atualmente, temos uma variedade imensa de temáticas no yuri, incluindo também, por exemplo, personagens adultas e histórias de fantasia.

Segundo Ichijinsha, a editora que publica a revista yuri Yurihime, 70% dos leitores da revista são do sexo feminino. A parte de carta dos leitores da revista é cheia de meninas falando que são apaixonadas pelas colegas de sala ou professoras, assim como mulheres adultas relatando as tentativas de se declarar para a mulher que gostam. E, ao mesmo tempo, também há várias garotas dizendo que amam ler yuri, apesar de serem heterossexuais.

Diferente do BL, que é publicado apenas em revistas voltadas para o público feminino, mangás yuri são publicados em revistas de todo tipo de demografia. Portanto, também há yuris que são lançados em revistas voltadas para o público masculino, mas isso não quer dizer que somente homens heterossexuais leiam e gostem de yuri.

Agora, falando sobre os autores, há tanto homens como mulheres escrevendo yuri. Algumas autoras de mangás yuri são lésbicas, como Nakamura Ching, por exemplo. Ela disse em uma entrevista que escreveu o mangá Gunjou (que recentemente ganhou uma adaptação em live action com o nome Ride or Die) baseado nas suas próprias experiências. Nakamura também publicou um livro em 2016 contando mais sobre sua vida, e como é viver com a esposa e os três filhos dela.

Escrevi Gunjou porque queria desenhar a pura solidão de uma pessoa solitária. Queria transforma nossa gentileza e crueldade (as emoções que não conseguimos controlar) em um mangá.
E também, porque sou gay.
Viver escondendo que eu era gay era desagradável, então queria me dar a chance de admitir que eu sou gay.

Nakamura Ching em entrevista para Okazu

Conclusão

Querer criar uma regra de que tipo de autor escreve qual tipo de história não dá muito certo. Há evidências concretas de que mangás BL e Yuri são escritos tanto por homens quanto por mulheres, e que vários desses autores não são heterossexuais. Esses mangás são publicados em revistas que possuem seus respectivos público alvo, mas nada impede que pessoas de fora dessa demografia estabelecida as leiam. Além disso, por trazerem essas questões de gênero e sexualidade, esses mangás também permitiram que seus fãs descobrissem mais sobre si mesmos.

Pessoalmente, acho muito furado seguir essa lógica do “mangás sobre personagens homens gays só são válidos se forem escritos por um homem gay”. Primeiro porque uma quantidade absurda de mangás ficariam em um limbo de validez por não haver informações sobre o gênero e/ou orientação sexual do autor. E segundo, essa é mesmo uma boa forma de separar o que é bom e válido do que é ruim e deve ser ignorado?

Porque já li e assisti yuris incríveis que foram criados por homens (Sasameki Koto e Utena, por exemplo), e isso não teria acontecido se eu me apegasse a essa lógica. Acho que seguir isso à risca é só uma forma de perder a oportunidade de ter contato com obras excelentes.

Afinal, a qualidade do conteúdo não é ditada apenas pelo que o criador dele é ou deixa de ser, não é?

Referências

Chapter Title: LILIES OF THE MARGIN: Beautiful Boys and Queer Female Identities in Japan Chapter Author(s): James Welker Martin, Fran, et al., editors. AsiaPacifiQueer: Rethinking Genders and Sexualities. University of Illinois Press, 2008. JSTOR, www.jstor.org/stable/10.5406/j.ctt1xch37.

Welker, James. “Flower Tribes and Female Desire: Complicating Early Female Consumption of Male Homosexuality in Shōjo Manga.” Mechademia, vol. 6, 2011, p. 211–228. Project MUSE, doi:10.1353/mec.2011.0007.

Where Is My Place in the World?: Early Shōjo Manga Portrayals of Lesbianism. Fujimoto Yukari, Lucy Fraser Mechademia, Volume 9, 2014, pp. 25–42 (Article) Published by University of Minnesota Press https://doi.org/10.1353/mec.2014.0007.

The sexual and textual politics of Japanese lesbian comics: Reading romantic and erotic yuri narratives. Kazumi Nagaike. electronic journal of contemporary japanese studies Article 4 in 2010 First published in ejcjs on 30 September 2010. https://japanesestudies.org.uk/articles/2010/Nagaike.html

Boys Love Manga and Beyond: History, Culture, and Community in Japan. McLelland, Mark & Nagaike, Kazumi & Suganuma, Katsuhiko & Welker, James. Jackson: University Press of Mississippi, 2015.https://muse.jhu.edu/book/39003

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Alice Coelho

Tradutora, otaca, formada em administração, apreciadora de bishounens e sorvete de chocomenta.