Correspondência dos Lírios

Alice Coelho
6 min readApr 9, 2021

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Rosa de Versalhes (1972) por Riyoko Ikeda

A década de 70 foi significativa para os mangás shoujo. Com as obras do chamado “Grupo do ano 24” fazendo grande sucesso com suas histórias dramáticas de amor impossível e romances trágicos, surgiu também uma nova obsessão entre as garotas que liam mangás: Os Bishounen.

O termo, que literalmente significa “Rapaz Bonito”, é usado para descrever personagens masculinos jovens de aparência andrógina. Foi também na mesma época que surgiu os chamados shounen-ai, mangás shoujo focados em relações homossexuais entre homens, precursores do Boys Love (também chamado erroneamente de yaoi) que conhecemos atualmente.

É claro que não podemos negar que para muitas fãs, até hoje, o apelo do Bishounen está em se imaginar como par romântico do rapaz bonito fictício, mas entre os pesquisadores e as próprias autoras dos mangás, há um consenso de que muitas leitoras usavam a figura do Bishounen como um vetor através do qual as leitoras podiam se projetar na história e vivenciá-la tendo uma distância da realidade de ser mulher. Nos mangás shounen-ai, como o famosíssimo Kaze to Ki no Uta, escrito por Takemiya Keiko, o conceito é ainda mais forte, dado o conteúdo sexual que as obras possuíam. Poder entrar em contato com sexo sem a presença da figura da mulher, e todos os tabus ligados a ela, era importante em um contexto em que a sexualidade feminina era ainda mais reprimida do que é atualmente. Desde aquela época, a figura do Bishounen e os mangás Boys Love ainda servem como meio de muitas pessoas experimentarem com a própria sexualidade e identidade de gênero.

No final da década de 70, surgiram diversas revistas focadas na estética dos Bishounen (rapazes jovens e bonitos de aparência andrógina) que se tornaram tão populares nas páginas dos mangás Shoujo da época. Além da June, conhecida como a primeira revista de mangás Boys Love que existiu, outra revista que surgiu na época foi a Allan.

Apesar de ambas terem o foco nos belos e jovens rapazes, fictícios ou não, Allan era uma revista que tinha um foco mais textual, ao contrário da June, que era mais gráfica. As revistas não se prendiam apenas à ficção, mas também continham entrevistas com celebridades, e artigos diversos sobre a cultura gay da vida real.

Ambas as revistas possuíam um caráter colaborativo, incluindo muito conteúdo enviado pelos leitores, como fotos, mangás, artigos e anedotas selecionadas pelos editores.

As seções de cartas dos leitores e de anúncios pessoais eram muito comuns em revistas do mundo inteiro naquela época em que não havia internet. Anúncios pessoais eram breves descrições sobre a pessoa e/ou sobre o tipo de relacionamento que buscavam e informações de contato, como número de telefone e endereço para o envio de cartas. Era uma forma de conhecer pessoas com interesses parecidos em uma época em que redes sociais não existiam.

Nas revistas de bishounen, como a June e a Allan, era através dessas seções que pessoas que escreviam e publicavam mangás de forma independente (os chamados doujinshi) divulgavam seus trabalhos e se conectavam. Além de servir como meio para as fãs dos Bishounen dos mangás fazerem amizade entre si e divulgarem o próprio trabalho, essa seção também foi uma forma importante para essas jovens explorarem a própria sexualidade e identidade de gênero, trocando experiências e relatos entre si. Esse fenômeno ficou mais expressivo na revista Allan, apesar de o autor dos artigos que consultei observar que relatos similares vindos de fãs dos mangás shounen-ai apareciam em diversas revistas gays japonesas da época, inclusive na famosa Barazoku.

Allan começou a ser publicada em 1980, e seguiu até 1984, quando se tornou Gekkou (Luna), e continuou sendo publicada até 2006. Era uma revista muito focada na beleza erótica masculina e na homossexualidade, focando muito na estética (tanbi), como indicado pelo seu slogan “Uma revista estética para garotas”. Logo na primeira edição já havia uma introdução à homossexualidade ao longo da história. Apesar de ser inicialmente focada em homens e na figura masculina, Allan também tinha uma forte representação lésbica na forma de artigos e imagens, representação essa que ficou mais proeminente depois do segundo ano de publicação.

Essa representação também aparecia nitidamente nas seções de cartas de leitores e de anúncios pessoais, e os anúncios de leitoras que tinham interesses em outras mulheres ficaram tão frequentes na revista que até criaram uma seção separada somente para eles.

O Yuri Tsuushin (百合通信 — “Correspondência dos Lírios”) surgiu na edição de abril de 1983, contendo 226 anúncios “Yuri”. Embora “Yuri” (lírio) seja popularmente usado como sinônimo de homossexualidade feminina, no caso da Allan, a palavra não era usada exatamente como um sinônimo direto de “lésbica”. Muitos dos anúncios incluídos na seção eram de garotas que tinham curiosidade em experimentar um relacionamento com outra garota, mas que não se consideravam abertamente lésbicas, ou simplesmente estavam em busca de uma relação platônica.

Os anúncios geralmente continham uma descrição do tipo de relacionamento buscado, especificando se seria físico ou não. Os termos “irmã mais velhas” (onee-sama) e “irmã mais nova” (imouto) eram muito utilizados nesse aspecto, sendo o primeiro muito mais frequente que o segundo nas edições mais antigas da revista, indicando que a maioria dessas leitoras possuíam pouca ou nenhuma experiência em relacionamentos românticos ou sexuais, e buscavam moças mais experientes que pudessem assumir um papel mais ativo e, de certa forma, guiá-las na relação.

Vários leitores também falavam a respeito de identidade de gênero na revista. Declarações como “eu queria ter nascido homem” eram frequentes, além de leitores que se identificavam ou desejavam ser como os Bishounen dos mangás, usando inclusive os nomes desses personagens como pseudônimo ao assinar as cartas. Houve também mais de uma pessoa dizendo que podia “ser/se tornar homem ou mulher” dependendo do que a outra parte buscasse em uma relação.

A edição de junho de 83 da Allan incluiu uma seção chamada Bara Tsuushin para seus leitores homens publicarem anúncios, sendo “Bara” (rosa) um termo que era associado a homossexualidade masculina na época, mas que hoje é considerado depreciativo pela comunidade gay japonesa. Essa primeira aparição do Bara Tsuushin contou com apenas 8 anúncios, em contraste aos 300 anúncios que apareceram no Yuri Tsuushin da mesma edição. A revista também acrescentou uma seção chamada “Outros”, para anúncios que não especificavam se eram puramente “bara” ou “yuri”.

Entre os anúncios de publicações independentes, Allan divulgou diversas revistas, grupos e boletins informativos criados por lésbicas e voltados para o público lésbico. Entretanto, para uma moça jovem que ainda morava com a família, ter revistas abertamente lésbicas, ou receber esse tipo de conteúdo pelo correio era bem arriscado. Comprar ou pegar emprestado de alguma amiga uma revista que tinha rapazes bonitos como foco era bem mais seguro nesse aspecto, portanto, acho que a revista Allan e a sua seção Yuri Tsuushin tiveram sua importância no processo de descoberta de sexualidade e identidade de gênero de vários jovens japoneses ao longo dos anos 80.

Mesmo que essa experimentação seja só algo temporário, essa é uma parte importante do processo de autodescoberta, e é legal ver como os mangás tiveram e continuam a ter uma influência nesse aspecto da vida de tantas pessoas.

Referências

Chapter Title: LILIES OF THE MARGIN: Beautiful Boys and Queer Female Identities in Japan Chapter Author(s): James Welker Martin, Fran, et al., editors. AsiaPacifiQueer: Rethinking Genders and Sexualities. University of Illinois Press, 2008. JSTOR, www.jstor.org/stable/10.5406/j.ctt1xch37.

Welker, James. “Flower Tribes and Female Desire: Complicating Early Female Consumption of Male Homosexuality in Shōjo Manga.” Mechademia, vol. 6, 2011, p. 211–228. Project MUSE, doi:10.1353/mec.2011.0007.

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Alice Coelho

Tradutora, otaca, formada em administração, apreciadora de bishounens e sorvete de chocomenta.